Eu prometo não fazer isso de novo
Esta semana estive em um velório. Eles são sempre lastimáveis, exceto quando a ex-alma vivente fora desprezada em demasia pelos seus semelhantes quando ainda possuía fôlego de vida, e esse desprezo fosse fruto de sua extrema petulância, uma reação de indiferença a sua ação de desprezo para com aqueles que a cercaram em vida. Simplesmente a terceira Lei de Newton aplicada à convivência em sociedade.
Mas este não era o caso que se passava, pois todos os que ali estavam presentes, carregavam em seus semblantes o fardo penoso da morte, os poucos sorrisos que se via eram demasiadamente hipócritas e incoerentes com a situação vivenciada, as lágrimas da saudade imperavam naquele lugar. Seria excesso de presunção afirmar com certeza até que ponto havia sinceridade nas lágrimas ou sorrisos. Mas apenas em meu coração a certeza da tristeza do momento realmente persistia.
Quanto à ex-alma vivente? Ela repousava com grande serenidade, avessa as lágrimas e ranger de dentes espalhados ao seu redor. Havia quem acalentasse esperanças de que tudo aquilo não passava de um grande pesadelo, que tão logo o cadáver baixasse à sepultura, todos alegremente acordariam e seriam até capazes de achar graça de toda aquela situação. Contudo, isso não ocorreu. E os ponteiros do relógio passavam muito lentamente, como a estender ainda mais a dor.
Começaram assim a sentir agonia, como se estivessem a desejar que tudo passasse para que pudessem o mais rápido possível voltar para suas casas e, constatar se o que haviam acabado de enterrar de fato lhes faria falta. Mas a pressa de nada adianta em situações como esta. Ela poderia até ter sido útil quando ainda havia algum resquício de vida naquela alma que por ali repousava. Agora, porém, não possuía função alguma. Era necessário sentir os minutos passarem a fim de trazer a todos os espectadores ali presentes, uma profunda meditação, fazendo-os refletir: Onde eu cooperei para que essa tão bela ex-alma vivente exalasse seu último suspiro? O que eu fiz para ajudar a sepultá-la?
Não estou aqui narrando nenhum dos crimes contra a vida. Nesse velório não havia nenhum exclusivo culpado. A culpa era concorrente. Todos os que ali estavam presentes detinham parcela de responsabilidade para este desfecho. Os que lamentavam o final, choravam. E os que ignoravam, riam-se. Dessa forma estava dividida a sala fúnebre.
Quanto a mim, sempre tive uma tendência natural de estar com os que choram. Uma espécie de conforto para a alma, por acreditar que eles serão consolados. E também meditava até que ponto ajudara naquele sepultamento. Minha conclusão foi significativa: não dei o golpe final, mas era bem provável que minha indiferença aquela alma, também não tenha ajudado a evitar o mal maior. Fazer o mal ou deixar de fazer o bem, apresenta as mesmas conseqüências no final.
Foi assim que a ex-alma vivente foi enterrada naquela tarde ensolarada de sexta feira. Ela não era propriamente uma pessoa, de carne e osso, órgãos a interagir de forma perfeita e harmoniosa, um cérebro privilegiado a sempre pensar racionalmente. Tratava-se do mais belo princípio de vida. Era o amor que estava sendo sepultado. Agora, pergunte-me como isso pode acontecer? Argumentos são a própria resposta! A constante insatisfação humana em não ser feliz com o que dispõe, precisa de sempre mais. Mais prazeres, mais diversão, mais comida para sua fome de lascívia. Tornando-se cada vez mais avarento e mais orgulhoso e cada vez menos generoso, menos afetuoso. Tudo é buscado, menos o amor, ele ficou em segundo plano. Pra que precisaríamos de amor quando podemos satisfazer todos os nossos anseios, tendo um, dois ou quantos parceiros forem suficientes para atender a nossa carne fraca? Pra que amor se temos recursos financeiros que podem nos trazer alegria suficiente?
Foi triste aquela tarde; argumentos foram expressos, um a um. Os semblantes se alteraram com o decorrer do diálogo. E no final tudo foi justificado, sempre há uma teoria explica-tudo disposta a conceder um afago ao corrompido coração humano. As pessoas traem? Resposta: São os genes! As pessoas mentem? Resposta: É a seleção natural!
Será que não se consegue lutar com aquilo que traz tristeza as pessoas que nos cercam? Será que já nos tornamos tão escravos das próprias paixões? Será que somos capazes de ressuscitar o amor? Apesar de não termos nenhum poder sobrenatural?
A premissa maior ainda impera, pois acima de qualquer rótulo; do sexo, da religião, da cor, da crença ou descrença. Há um que prevalece: homo sapiens sapiens. O topo da cadeia evolutiva. Eu prefiro acalentar a esperança que essa raça de elevada inteligência não vai deixar se degenerar dessa forma, já que não seria uma demonstração dessa elevada capacidade.
Porém, passada aquela tarde ensolarada de sexta feira, onde cada um pode sepultar um pouco do amor, partiram cada qual para suas vidas e será que voltaram satisfeitos? Eu não posso responder pela coletividade, mas quanto a mim, espero não permanecer no portão da indiferença, pois essa ex-alma vivente me tem feito muita falta. Disponho-me a tentar ressuscitá-la, mesmo não tendo super poderes.
Alessandra Regina
22/02/2012